em Meio Ambiente, Não categorizado, Políticas públicas

Pense em uma grande área próxima ao mar, muito baixa e plana, que apresenta uma complexa rede de rios, afluindo a um grande estuário. Agora pense em uma ocupação humana dessa área historicamente marcada por intervenções nessa rede, caracterizadas pelo uso extensivo de canalização e retificação de trechos dos rios, desvios e transposição de bacias, construção de diques marginais, estruturas de comportas e, mais tarde, implantação de estações de bombeamento para operação da “nova” rede de drenagem.

Agora, pense nos possíveis problemas e consequências dessa ocupação. Problemas com a drenagem urbana e rural das áreas protegidas por diques, risco de falha das estruturas, como rompimento dos diques e falha na operação das comportas, resultando em cenários de inundações cada vez mais frequentes e severos, ao passar dos anos com o aumento da área urbana.

Pensou?

Imaginou que lugar? Se você mora na região metropolitana do Rio de Janeiro, muito provavelmente passou pela sua cabeça a imagem da Baixada Fluminense. Certo?

Porém, esse cenário que acabei de descrever acontece bem longe do Rio, bem longe do Brasil…

A AquaFluxus participa, juntamente com a Escola Politécnica da UFRJ, de um projeto de pesquisa internacional, fruto de uma parceria entre a União Europeia e a América Latina, através de uma rede constituída por um grupo de cinco países: México, Chile, Brasil, Espanha e Itália. Esse projeto, chamado de SERELAREFA, tem como objetivo discutir a requalificação de rios, entendendo melhor a dinâmica dos processos fluviais, os efeitos das intervenções antrópicas e quais podem ser as ações encaminhadas à solução de problemas relacionados aos distúrbios antrópicos no ambiente dos rios.

Em uma missão de pesquisa desse projeto, acabei me deparando com o cenário que descrevi lá no início do post. O local que estamos estudando fica na região costeira do Mar Adriático, mais exatamente, na Província de Veneza, região do Veneto, Itália.

Região do Veneto, Itália

A história de ocupação da Baixada repete muitos dos padrões que observei aqui (ainda estamos terminando a missão). É claro que cada um possui suas particularidades, mas na concepção primordial, as duas se parecem muito. Em ambos os casos, a estratégia de ocupação foi o isolamento do sistema fluvial das áreas de interesse para o homem, através da implantação de diques e retificação dos rios, visando a proteção e o combate ao regime natural de cheias da bacia. Também nos dois casos, as bacias foram ocupadas de forma desordenada, sendo o caso da Baixada muito mais acentuado…

Assim como nós, a região do Veneto sofre frequentemente com episódios de inundações e busca por ações que mitiguem esses problemas. Um fator diferente encontrado aqui é o nível do terreno próximo à Laguna de Veneza, que chega a ser mais baixo que o nível médio do mar. Essa característica impossibilita a drenagem natural, por gravidade, para a Laguna, fazendo com que toda essa região mais baixa dependa da operação de um sistema de bombeamento e de comportas, funcionando analogamente aos polderes da Holanda.

Com o passar do tempo, as soluções pontuais foram perdendo sua eficácia, resultando em um complexo sistema de canais interligados, protegidos por diques e dependente de uma difícil operação de comportas e bombas, para manejar os escoamentos durante as cheias.

Complexa rede de canais em uma bacia hidrográfica a montante da Laguna de Veneza

E agora, depois de muitos séculos de transformação e tentativas de adaptação do sistema hídrico para satisfazer as necessidades dos humanos, parte-se para uma nova alternativa de intervenção para o controle de enchentes: a requalificação de um trecho de um rio canalizado e confinado por diques, como parte de uma série de intervenções de desvio e armazenamento, imprescindíveis para uma região já consolidada e com locais que apresentam alto valor histórico, como castelos e igrejas.

Mas é engraçado que depois de tanto tempo, passamos a considerar que, na verdade, o ideal é respeitar o funcionamento do sistema, procurando impactar o menos possível o seu comportamento e, acima de tudo, aprendendo a conviver com sua dinâmica.

Acredito que estamos caminhando, ou ao menos deveríamos estar, para uma concepção de projeto que abandonará o termo COMBATE às inundações para adotar, definitivamente, o respeito aos ciclos naturais. Vamos torcer para que essa tendência atualmente presente nos projetos de pesquisa contamine o Estado da Prática…

Ciao a tutti…

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