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Mais uma vez, chuvas intensas castigam nossas cidades na Região Serrana e na Baixada Fluminense, mostrando nossa insistente incapacidade de conviver com tais eventos. Assim como toda a infraestrutura urbana, o sistema de drenagem deve ter um programa de gestão que vá muito além da implantação de galerias, sarjetas e limpeza de bueiros. Desde 2001, nossas cidades contam com uma ótima gama de ferramentas para melhorar a gestão de seus territórios, todos previstos na Lei Federal 10.257, o famoso Estatuto da Cidade.

Mas como essa lei pode implicar no controle de inundações urbanas?

Em minha pesquisa para o Mestrado, acabei estudando um pouco essa lei, buscando interfaces com a drenagem urbana. Apesar de não conter diretrizes especificas para o controle de inundações em áreas urbanas, o Estatuto da Cidade é responsável por “estabelecer normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”, com o objetivo de:

  • “…ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante (…) a garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações.”

Ainda em seu artigo 2º, a Lei estabelece como diretrizes gerais o planejamento do desenvolvimento das cidades de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus impactos negativos sobre o meio ambiente e a ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar usos excessivos em relação à infraestrutura urbana, deterioração de áreas urbanizadas e a poluição e degradação ambiental, garantindo ainda a proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído.

A partir dessas diretrizes já fica evidente a compatibilidade do Estatuto da Cidade com as políticas de controle de inundações, uma vez que o controle sobre o uso e a ocupação do solo terá efeito direto sobre o regime de escoamento pluvial. Assim, a busca por um desenvolvimento urbano que corrija seus impactos negativos, garantindo a proteção do meio ambiente natural e construído, evitando usos excessivos da infraestrutura urbana, deverá certamente considerar o manejo das águas pluviais para alcançar esses objetivos.

A Lei 10.257/01 possibilita o emprego de diversos instrumentos de política urbana como meios de controle dos impactos da urbanização sobre o ciclo hidrológico. O pesquisador do Observatório das Metrópoles, Paulo Carneiro, realizou uma leitura dos principais instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, destacando suas aplicações e potencialidades para articulação do controle do uso do solo em consonância com o gerenciamento dos recursos hídricos. Retirei do texto da minha dissertação um resumo conciso destes instrumentos e suas implicações para o controle de inundações, o qual foi baseado na tese de Doutorado de Carneiro (2008) e no livro Técnicas Compensatórias em Drenagem Urbana (2009):

  •  Parcelamento, edificação ou utilização compulsórios:
    • Obrigatoriedade de parcelar, edificar ou utilizar o solo urbano, induzindo o adensamento de áreas já dotadas de infraestrutura e evitando a pressão sobre as áreas ambientalmente frágeis, como áreas com riscos de inundações.

  •  Imposto predial e territorial urbano progressivo no tempo:
    • Induzir, por estímulo econômico, a utilização do solo urbano, a fim de coibir a não utilização ou a subutilização da propriedade, sob pena de pagamento do IPTU progressivo no tempo, tendendo a diminuir a pressão por novas áreas, assim como o instrumento anterior.
  • Desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública:
    • Incide sobre as propriedades não cumpridoras da utilização compulsória após decorridos cinco anos de aplicação do IPTU progressivo. Esse instrumento viabiliza o cumprimento da função social do espaço urbano, evitando a subutilização de terras. A desapropriação permite ao poder público prever áreas para realocação de famílias moradoras de áreas de risco ou a criação de áreas voltadas para a minimização de riscos de inundações, por meio da instalação de parques urbanos inundáveis, reservatórios de detenção ou áreas que aumentem a infiltração das águas.

  • Direito de preempção:
    • Confere ao poder público municipal preferência para a compra de imóvel urbano, permitindo a aquisição de áreas para realocação de famílias em áreas de risco ou para minimização de riscos de inundações, através da instalação de estruturas de controle, como bacias de detenção e retenção, dispositivos de infiltração, entre outras. Será de maior interesse quando essas estruturas forem combinadas à criação de áreas verdes e espaços públicos para atividades de lazer.
  • Outorga onerosa do direito de construir:
    • Consiste na autorização pelo Poder Público para se exercer o direito de construir com coeficientes superiores aos previamente estabelecidos, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário. Esse instrumento permite uma flexibilização das taxas de ocupação em áreas preferenciais para a ocupação, diminuindo a pressão sobre outras áreas mais sensíveis aos riscos de inundações.
  • Transferência do direito de construir
    • Para propriedades em que incidam restrições ao uso do solo, esse instrumento permite ao proprietário do imóvel transferir o direito de construir para outro local, evitando, assim, a desvalorização de imóveis com áreas de preservação. Esse instrumento permite a um proprietário de áreas de interesse para o controle de inundações, como áreas alagadiças e faixas marginais, transferir o direito de construir sobre essas áreas para outros locais, retirando do proprietário a perda econômica devido à restrição de uso de sua propriedade.

  • Operações urbanas consorciadas:
    • Conjunto de intervenções e medidas, coordenadas pelo poder público municipal, com a finalidade de preservação, recuperação ou transformação de áreas urbanas contando com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados. Permite ao poder público traçar estratégias de recuperação ambiental e controle de inundações, viabilizando novas fontes de recursos para aplicação na mesma área em que foi negociada a operação.

  • Estudo de impacto de vizinhança:
    • Avalia os efeitos positivos e negativos da implantação de novos atividades ou empreendimentos na qualidade de vida da população residente na área e em suas proximidades. Esse instrumento possibilita a previsão de contrapartidas para mitigação dos impactos sobre o ciclo hidrológico, como a exigência de medidas compensatórias dos efeitos negativos da impermeabilização de superfícies.

  • Zonas Especiais de Interesse Social:
    • A instituição de zonas especiais de interesse social tem como consequência a redução das pressões urbanas sobre áreas de risco, as quais tendem a ser invadidas e ocupadas irregularmente, uma vez que são criadas políticas de habitação voltadas para inclusão urbana da população de baixa renda. Essas áreas também podem reduzir possíveis impactos do adensamento no ciclo hidrológico, exigindo padrões de construção sustentáveis e previsão de medidas compensatórias para o controle de inundações, além de trazer para a legalidade famílias alocadas em áreas irregulares e de risco, possibilitando um maior controle do uso do solo pelo município.

Até quando vamos ignorar nossas próprias leis?

Abraços e até a próxima…

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Fonte da imagem de capa: https://iesb.blackboard.com/

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Mostrando 2 comentários
  • Renato de Almeida. Maximiano
    Responder

    Muito pertinentes as informações apresentadas. O estatuto das cidades é sub-explorado. Ele é a base da elaboração dos planos diretores dos municípios.

    • Osvaldo Moura Rezende
      Responder

      É isso aí Renato! Há claramente um certo menosprezo por essa grande ferramenta que temos para planejar nossas cidades…

      Grane abraço.

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