Texto do professor Paulo Canedo* e de Matheus Sousa
Nos últimos 18 meses o sistema Cantareira, da região metropolitana de São Paulo, tem tido sua situação variando de ruim para calamitosa. Com o desenrolar do ano extraordinariamente seco de 2014, São Paulo viu suas reservas encolhendo e escolheu a pior maneira de agir perante a crise: ignorando-a. A consequência dessa escolha é que agora se torna quase inevitável para a população da cidade de São Paulo passar o ano de 2015 sem enfrentar sérios desconfortos com água potável. Além disso, será preciso contar com boas chuvas, caindo no devido local, durante os próximos anos, para que a crise da água potável possa ter sua página virada. No tocante à gestão hídrica, 2014 foi um ano para ser esquecido. Ou melhor, um ano para ser lembrado e aprender com os erros.
Felizmente, a situação da região Metropolitana do Rio de Janeiro é um pouco melhor, pois temos chances reais de ficarmos livres do racionamento de água nas torneiras. Mas, para podermos passar incólumes por 2016, sem depender das benesses de um dilúvio, a hora de agir já está passando.
Para melhor entender a situação do Rio de Janeiro, precisamos saber de onde vem a água que consumimos. Praticamente toda a água que abastece a região é proveniente de uma transposição de bacia feita em Santa Cecília, logo depois de Volta Redonda, onde as águas retiradas do rio Paraíba do Sul são lançadas em direção ao sistema Guandu. Portanto, bebemos a água do Paraíba do Sul, o único rio de porte nas proximidades do Rio de Janeiro.
Nesse sentido, quem garante a água do sistema Guandu é a regularização das águas do rio Paraíba do Sul, feita por grandes reservatórios que guardam as águas excedentes do período de verão, para poderem ser usadas nos períodos de inverno.
Dos quatro reservatórios que armazenam as águas do Paraíba do Sul, três estão em solo paulista (Paraibuna, Santa Branca e Jaguari) e somente Funil, o menor deles, encontra-se em solo fluminense. Após passar por essa série de reservatórios é que a água do Paraíba do Sul vai ser transposta para o sistema Guandu. Por isso, costuma-se avaliar a quantidade de água armazenada no sistema do Paraíba do Sul usando o que chamamos de “Reservatório Equivalente”, que é a soma do volume dos quatro reservatórios mencionados.
No final de 2010 o Reservatório Equivalente estava praticamente cheio, sendo que a primeira grande queda no nível dele ocorreu em 2012. Mas, foi em meados de Dezembro de 2013 que a situação começou a se mostrar mais crítica, pois as chuvas que deveriam estar caindo naquela ocasião não apareceram. O Reservatório Equivalente estava pela metade e não estava havendo água para reenchê-lo.
Na verdade o período natalino de 2013 deveria ter chamado a atenção dos administradores das duas maiores metrópoles do país. O período chuvoso no sudeste iniciava-se como bastante seco e o Rio de Janeiro tinha suas reservas pela metade, enquanto que São Paulo tinha, no Cantareira, somente 1/3 de suas reservas, agravado pelo fato de que a afluência de água ao Cantareira estava bem abaixo do mínimo histórico.
Não detectar o alerta que a natureza enviava no Natal de 2013, foi o primeiro de uma série de erros consecutivos. Ao final de fevereiro de 2014, já se encaminhando para o final do período chuvoso, a situação de criticidade hídrica das duas metrópoles já estava praticamente delineada. Aos nítidos sinais respondia-se com o silêncio. O Rio de Janeiro ainda tinha água reservada, mas caminhava para uma situação similar a 2003, quando tivemos sérios problemas com o abastecimento do Grande Rio e das municipalidades ao longo do Paraíba do Sul. Quanto a São Paulo, a criticidade já era muito severa. Em vez de estabelecer forte controle sobre suas reservas quase exauridas, São Paulo jogava todas as suas fichas num final de 2014 com uma pluviosidade excepcional para poder se livrar do racionamento. Isto é, São Paulo contava com o uso do ovo que ainda estava dentro da galinha.
Mas a imprevidência cobrou seu preço. Doze meses se passaram, o Natal de 2014 chegou, mas as chuvas não vieram. Mais um verão seco para afligir uma população não preparada pelas autoridades.
Na verdade, enquanto São Paulo ignorava completamente a crise, o Rio de Janeiro, desde meados de 2014, se articulava com a ANA para estabelecer algum controle da saída de água dos quatro reservatórios do Paraíba do Sul. E graças a essa articulação, o Rio tem real possibilidade de passar o ano de 2015 sem racionamento de água potável, muito embora com reservas severamente fatigadas.
Não foi por falta de sinais, pois em março de 2014, a academia da UFRJ já discutia a necessidade de promover drásticas mudanças na gestão das águas dos reservatórios do rio Paraíba do Sul, de modo a mitigar os efeitos da seca no abastecimento público do Rio. Por isso ou independentemente disso, o INEA e a ANA promoveram uma série de medidas de controle das águas dos reservatórios, garantindo mais água para o Grande Rio e para as cidades fluminenses do vale do Paraíba. Envolver a população e as empresas de saneamento no combate aos efeitos desta seca de 2015, bem como estabelecer medidas para aumentar a resiliência do sistema Guandu são deveres ainda por cumprir.
Como se vê, as situações das duas maiores metrópoles do país, no que diz respeito ao perigo de desabastecimento, são, atualmente, distintas. A crise paulista é bem mais aguda. É verdade que a falta de chuva foi mais intensa para São Paulo do que para o Rio. Também é verdade que 2014 começou com as reservas hídricas de São Paulo em situação potencialmente mais crítica que a do Rio. Mas esses fatos deveriam reforçar, ainda mais, a necessidade de medidas preventivas das autoridades paulistas. Em vez de adotar medidas mitigatórias para os efeitos de uma clara situação de seca extraordinária, os 365 dias de 2014 serviram de palco para uma política de perigosa inação.
É importante que se entenda, conceitualmente, o que se deva esperar dos gestores das águas, principalmente nos períodos de escassez.
Trata-se de fazer o balanço de “entradas” e “saídas” das águas reservadas, com alguma similaridade com o balanço financeiro que se faz com a poupança familiar de uma casa, onde a renda mensal não é fixa e depende da situação econômica futura.
Tal qual a poupança pode suportar os gastos familiares, as águas reservadas garantem o abastecimento normal de uma cidade por vários meses. As “entradas” são as chuvas e as “saídas” são as demandas de água para os mais diversos usos.
Para as “entradas” das águas devem-se imaginar vários cenários de chuvas futuras e suas respectivas probabilidades de ocorrerem. As chuvas futuras estão fora de nosso controle e tudo o que podemos fazer é acompanhar e refinar os cálculos de probabilidade. No entanto, as “saídas”, que são os consumos de água pelos setores elétrico, industrial, agrícola e saneamento, estão (ou deveriam estar) dentro de nosso controle. O cotidiano acompanhamento dessas “entradas” e “saídas” ensina o que os administradores das águas devem fazer, assim como ensina ao controlador da poupança familiar, o que cada um deve fazer para a família não falir financeiramente.
Dar ciência da situação e procurar o apoio participativo de todos é a primeiríssima medida. Sine qua non. Não permitir e punir o desperdício é a segunda. Daí em diante, as medidas variam com o recuo, ou avanço, da gravidade da situação. Quem já esteve gravemente enfermo, sob o controle médico, sabe o quão é bom ter um médico que lhe informe sistematicamente a real situação da enfermidade. Todos rejeitam o médico que nega a doença, mesmo que não haja óbito.
Sem menosprezar a gravidade da crise gerada pela seca meteorológica que atacou o sudeste, devemos ter mais temor da nossa capacidade de gerir nossas águas ou da inação das nossas autoridades perante a crise.