Foto de capa: Marcio Mercante / Agência O dia (https://goo.gl/gV4AzD)
Para brindar o início de mais uma semana, na manhã da última segunda-feira, dia 26/11/2018, moradores da capital fluminense foram “pegos de surpresa” por um verdadeiro caos no trânsito. Parecendo mais uma obra da maldição das segundas, houve falha generalizada dos sistemas de drenagem em vários pontos da cidade, em decorrência de uma precipitação bem intensa. Todos os jornais tiveram um dia bem intenso, tentando mostrar as dificuldades enfrentadas por muitas pessoas para conseguir chegar ao trabalho.
G1 – Forte chuva trava o trânsito com alagamentos e deslizamentos no Grande Rio
Veja – Chuva deixa o Rio de Janeiro em estágio de atenção
R7 – Rio ainda tem previsão de chuva moderada a forte nesta segunda-feira (26)
O secretário da Casa Civil municipal, Paulo Messina, fez uma declaração sobre o evento, culpando a ocorrência da chuva justamente na hora do pico da maré. Esse papo já é um velho conhecido dos cariocas, até porque é verdadeira a correlação entre maré alta e maior dificuldade em drenar as áreas costeiras. Porém, eu fiquei curioso, como de costume, e resolvi dar uma olhada nos dados de chuva que foram registrados no sistema de monitoramento de chuvas da Prefeitura do Rio de Janeiro, o Alerta Rio.
Realmente houve a ocorrência de um evento concentrado mais na Zona Oeste da cidade bem na virada do domingo para segunda-feira. O posto do Tanque registrou um total de 76,2mm de chuva, em cerca de 2 horas. Esse evento localizado causou alguns transtornos, mas como era final de domingo, havia pouca movimentação nas ruas e a Prefeitura relatou que a situação foi rapidamente controlada.
Porém, uma chuva com essas características não deveria produzir tantos impactos negativos assim. Considerando o evento inteiro, segundo estatísticas da Fundação Rio-Águas, a precipitação possui uma recorrência de 4 anos, ou seja, há uma probabilidade de quase 30% de que essa chuva aconteça em um determinado ano. Segundo as diretrizes da própria Prefeitura do Rio de Janeiro, os sistemas de drenagem urbana devem ser capazes de funcionar sem falhas quando houver ocorrência de tempestades com recorrência de até 10 anos, que representam chuvas com probabilidade de ocorrência de 10% em um ano. Mesmo se consideramos o núcleo central da tempestade, que concentrou uma chuva de 57mm/h em 1h15min, representa um evento com recorrência de 7 anos, com 15% de chances de acontecer em um ano.
Resumindo, essa chuva que caiu na Zona Oeste, registrada no posto do Tanque, não foi um evento extremo, o qual deveria superar a capacidade de funcionamento do sistema de drenagem da cidade.
Mas e o evento na Zona Sul, que rolou na manhã da segunda?
As chuvas precipitadas sobre a Zona Sul carioca não tiveram acumulados maiores que o evento da Zona Oeste registrado no posto do Tanque. Em uma consulta aos registros do Alerta Rio, o posto do Jardim Botânico apresentou o maior volume de chuva, com um acumulado total de 106,2 mm, precipitados em um período de 24 horas. Analisando o evento ao longo do dia, é possível observa a ocorrência de dois núcleos temporais de tempestade, um mais concentrado entre 5h00 e 8h00 da manhã e outro entre 10h00 e 12h00.
Os problemas de alagamentos se concentraram logo no primeiro núcleo de chuva, com a cidade amanhecendo praticamente parada, com ruas inundadas nos bairros do Jardim Botânico, no Catete, Botafogo e Centro. Assim, podemos confirmar a informação do secretário da prefeitura, que a chuva havia precipitado com força justamente na hora da maré alta, que aconteceu por volta de 5h40 da manhã. No segundo núcleo temporal da tempestade, a maré já estava baixando, gerando menor impacto no sistema de drenagem.
Porém, culpar a coincidência dos fenômenos, maré alta e chuva, é o famoso “tirar o seu da reta“. Tudo bem que a ocorrência de uma chuva extrema, com baixa frequência, na mesmo momento em que a maré está em seu mais alto nível acaba alterando a probabilidade de ocorrência do evento. Mas essa coincidência não é algo impensável ou pouco provável. Essa combinação não pode pegar de surpresa uma administração pública responsável por gerir uma cidade costeira. De forma simplificada, considerando que no Rio de Janeiro temos duas preamares por dia, temos a ocorrência de níveis altos de maré durante 25% do tempo. Assim, uma chuva com recorrência de 2,5 anos precipitando durante uma maré alta terá uma chance de 10% de acontecer, que representa o risco associado de falha em projetos de drenagem urbana.
Se observamos o primeiro núcleo da chuva, que ocorreu junto à maré alta e causou a maior parte dos transtornos na cidade, veremos que a recorrência de eventos com essa magnitude são praticamente anuais, ou seja, estatisticamente acontecem todos os anos. Não é aceitável que a cidade conviva com essa alta frequência de eventos de inundação que paralisam seus serviços, causando prejuízos para toda a sociedade. O discurso que choveu mais que a média e que a maré estava alta apenas demonstra a incapacidade ou desinteresse dos responsáveis pela administração da cidade em garantir um ambiente seguro para todo cidadão.
Já que vivemos em uma área costeira, a cidade e seus sistemas de infraestrutura devem estar preparados para conviver harmonicamente com os fenômenos naturais típicos dessas regiões, como a variação dos níveis de maré. Assim, o planejamento do manejo das águas pluviais e o dimensionamento das redes de drenagem devem considerar essa variação. Algumas medidas, como o uso de comportas e estações de bombeamento devem ser estudadas, para analisar a viabilidade econômica de seu uso, que poderá reduzir os danos e prejuízos decorrentes desses alagamentos, em praticamente todas as estações de chuva. Antes disso, a simples revitalização dos sistemas de drenagem deve ser realizada, assim como um sério programa de manutenção das redes.
Uma boa alternativa para auxiliar a operação dos sistemas de drenagem é a utilização de sistemas de modelagem computacional, os quais podem ser construídos para simular as redes de drenagem durante a ocorrência das chuvas. Tal sistema, agrupado ao sistema de alerta de chuvas e a um modelo de marés, pode indicar regras de operação para reduzir os impactos dos eventos intensos.
Nós já aplicamos modelos computacionais para simulações de diversas áreas costeiras, utilizando o MODCEL, como a região do Maracanã, a cidade de Paraty, no sul fluminense, e toda a região de Campos, que possui um sistema hídrico bem complexo, com interferências do rio Paraíba do Sul, da Lagoa Feia e do mar. Os resultados ajudam a planejar intervenções estratégicas no sistema hidráulico, assim como no planejamento do território, subsidiando o zoneamento urbano, planos de risco, entre outros.
Adicionalmente a todo esse problema, temos ainda as incertezas dos impactos de uma provável mudança no clima. Os estudos apontam para uma considerável sobrelevação dos níveis do mar e um aumento da intensidade dos eventos de chuva intensa. Ou seja, se já estamos tomando um baile das chuvas com o padrão que temos hoje, o que será do Rio de Janeiro se houver tais alterações?
Precisamos urgentemente definir planos de ação para o enfrentamento de condições cada vez mais adversas e com uma população ainda mais exposta. Medidas de adaptação, voltadas para a harmonização do convívio da cidade com as águas e baseadas na natureza apontam para um futuro mais seguro, com menos prejuízos e maior qualidade de vida. Falta combinarmos os anseios da sociedade com a boa vontade de nossos políticos. Está na hora da população fazer pressão e tomar seu lugar na mesa das tomadas de decisão.
Vamos em frente!