Desde a década de 1970, o velho paradigma das intervenções para aumento da condutividade hidráulica da rede de drenagem como solução para os problemas de inundações vem sendo substituído por um abordagem mais holística, que considera o funcionamento da bacia hidrográfica como um sistema, priorizando medidas de detenção e infiltração das águas pluviais o mais próximo da geração de vazões possível.
Essa “nova” visão demorou para estacionar aqui e, quando chegou, sofreu algumas deturpações influenciadas pela “cultura das grandes obras“. Por isso vemos algumas anomalias do tipo “liberação de verbas para obras de controle de inundações só é feita se o projeto contemplar a implantação de barragem”. Essa necessidade da previsão de barragens nos projetos advém da interpretação errônea do MANUAL PARA APRESENTAÇÃO DE PROPOSTAS PARA SISTEMAS DE DRENAGEM URBANA SUSTENTÁVEL E DE MANEJO DE ÁGUAS PLUVIAIS, disponibilizado pelo Ministério das Cidades, onde são indicadas as premissas a serem adotadas nos projetos que desejam receber investimento do Governo Federal.
No Manual do MinCidades, está escrito:
“A Ação Apoio a Sistemas de Drenagem Urbana Sustentáveis e de Manejo de Águas Pluviais contempla intervenções estruturais e não-estruturais voltadas à redução das enchentes e inundações e melhoria das condições de segurança sanitária, patrimonial e ambiental dos municípios. As intervenções estruturais consistem em obras que devem preferencialmente privilegiar a redução, o retardamento e o amortecimento do escoamento das águas pluviais. Estas intervenções incluem: reservatórios de amortecimento de cheias, adequação de canais para a redução da velocidade de escoamento, sistemas de drenagem por infiltração, implantação de parques lineares, recuperação de várzeas e a renaturalização de cursos de água.”
A visão clássica e tradicional da engenharia torceu o nariz, pois, com o lançamento da AÇÃO : Apoio a Sistemas de Drenagem Urbana Sustentável e de Manejo de Águas Pluviais, pelo MinCidades, houve um indicativo que a cultura da simples dragagem e canalização estava próxima do fim. Contudo, a mudança nos padrões de projeto para controle das inundações esperada nunca aconteceu e, a partir do dia em que o MinCidades declarou que só daria dinheiro para obras que contivessem, entre outros, princípios de detenção das águas pluviais, todos os projetos passaram a apresentar uma barragem ou “piscinão” (Não sabe o que é um “piscinão”?, leia aqui). Dessa forma, um projeto de dragagem e canalização de um longo trecho de rio que apresente uma pequena barragem poderá ser aprovado, em alguns casos, com estruturas que apresentam pouquíssima eficiência.
A distorção da abordagem sustentável para o manejo das águas pluviais pode ser observada plenamente na opção adotada para implantação das medidas estruturais de controle de inundações na Bacia do Canal do Mangue, zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Por sua importância histórica e geográfica, a bacia do Canal do Mangue foi objeto de inúmeros estudos e projetos para mitigação dos graves problemas de inundações existentes, desde a grande obra responsável por secar o Saco de São Diogo e a Lagoa da Sentinela, próxima ao Campo de Santana, por meio da construção do próprio Canal do Mangue.
Na década de 1920, o Plano Agache indica a criação reservatórios nas encostas dos morros para controlar a descida da água. O Plano apresentou uma solução inédita até então, para o problema com as enchentes, tendo como medidas intervenções nas bacias hidrográficas, pela construção de dispositivos hidráulicos nas encostas, construção de reservatórios nas vertentes, proteção do solo e recomposição da cobertura vegetal, construção e conservação de rede de coletores. No entanto, com a Revolução de 1930, o Plano Agache foi revogado e a drenagem urbana caiu novamente no esquecimento do poder público. Após isso, a situação continuou a se agravar. Houve enchentes de grande magnitude e muitas perdas em 1966, 1988, 1996, 1998 e 2010.
Uma grande intervenção prevista para mitigar os problemas de inundações da bacia do Canal do Mangue é o projeto do Túnel Extravasor, que funcionaria a partir da interceptação das águas de cheia das calhas dos rios Joana, Maracanã, Trapicheiros, Macacos, transportando-as para despejo final em mar aberto, no costão do Vidigal.
Com esse traçado, o túnel seria utilizado para mitigar inundações tanto na Zona Norte, como na Zona Sul, reduzindo alagamentos recorrentes na Gávea e no Jardim Botânico. O túnel chegou a ter sua implantação iniciada, em 1973, tendo cerca de 1,5km de seu traçado concluído.
Entre os principais estudos para mitigação do problemas de inundações na bacia do Canal do Mangue, dois se destacam:
- Plano Diretor de Enchentes da Bacia do Canal do Mangue – PBCM
Priorizava intervenções distribuídas na bacia, através do Método de Regularização Espacial de Vazões, prevendo a instalação de 21 reservatórios distribuídos na bacia, principalmente nos sopés das encostas, reduzindo o efeito das cheias rápidas (flash floods), além de medidas de correção na rede de macrodrenagem.
- Plano Diretor de Manejo de Águas Pluviais da Cidade do Rio de Janeiro – PDMAP/RJ
Concentra as medidas de controle em quatro grandes reservatórios, estrategicamente posicionados para armazenar as águas de cheia excedentes das calhas dos principais canais da bacia, além de construção de transposições de bacia, por galerias subterrâneas como a do rio Joana.
As obras estão acontecendo e os reservatórios já devem estar próximos de sua conclusão. Muitas pessoas me perguntam se essas intervenções resolverão os problemas de inundações da Tijuca. Essa pergunta é extremamente difícil de responder, não por que eu não saiba a resposta, mas por que a resposta sempre será: NÃO. Isso para qualquer obra, seja aqui, seja na Holanda, pois toda intervenção para controle de inundações está sujeita a falhas estruturais e ocorrência de temporais mais fortes que o considerado para o dimensionamento da obra. Isso não está errado, antes que comecem a xingar os engenheiros hidráulicos, errado está em não assumir esses riscos, chamados riscos residuais… mas isso é assunto para outro texto!
Mas diz aí, o que você acha? Resumiram um complexo plano de bacia para controle de inundações, com 21 reservatórios, para um plano de intervenções com 4 reservatórios, com algumas dezenas de metros de profundidades…
Em um sistema com 21 estruturas de proteção, se uma falha (~5%), ou algumas falham, haverá um dano, certo. Agora, se em um sistema com 4 estruturas, uma falha (25%), ou duas (50%), qual será esse dano?
#ficaadica
Para saber mais sobre o tema:
- A Praça da Bandeira
- Fugindo dos Alagamentos – Tijuca/Praça da Bandeira
- A Praça da Bandeira e a Copa do Mundo
- Os Piscinões da Tijuca
- Summer is Coming… Part II
- O Desvio do rio Joana
Abraços…