In Meio Ambiente, Políticas públicas, Recursos Hídricos

Foto de capa: https://www.pexels.com/fr-fr/photo/champs-verts-sous-ciel-nuageux-bleu-80476/

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Há alguns anos, tive a oportunidade de trabalhar com a pedagoga Fátima Casarin, durante a elaboração do Plano Municipal de Saneamento Básico de Nova Friburgo. Tal parceria me possibilitou enxergar com mais clareza o mundo da participação pública e controle social, até então um assunto meio secundário para mim. Hoje, não tenho dúvida que é a ferramenta mais importante para a gestão de nossas cidades e para a melhoria contínua de nossa sociedade, de uma forma geral. Os planos participativos estão aí, exigidos na lei, mas são realmente inclusivos? Possibilitam a participação efetiva da sociedade no processo de decisão?

Fátima Casarim, pedagoga e ambientalista, mestranda ProfÁGUA /UERJ/UNESP/ANA, mestre em Rede Nacional em Gestão e Regulação de Recursos Hídricos, membro ativa do SINGREH desde 2001 e, atualmente,  membro do Comitê Guandu (ONG NVNV), Núcleo Executivo do Observatório de Governança da Água – OGA Brasil, compartilha conosco, hoje, uma interessante reflexão sobre a efetividade da Lei das Águas, a Lei 9.433/97.

O texto é reproduzido integralmente aqui:

Criada, em oito de janeiro de 1997, a Lei Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, nossa Lei das Águas, completa, em 2017, 20 anos. Próxima de sua maioridade, nossa jovem lei deveria receber os parabéns.

Mas será que está merecendo?!

Outra lei recente, a estadual das águas do Rio de Janeiro seguiu os passos e diretrizes da lei federal. Criada em 1999, lá se vão 18 anos.  As duas leis trouxeram, em seu cerne, uma nova forma de de gerir a água,  a descentralização e participação. Seus instrumentos são inovadores como, por exemplo, a cobrança pelo uso da água bruta, o plano de bacia, o sistema de informação, o enquadramento, a outorga, o sistema de informação e, acima de tudo, a obrigatoriedade do controle social, por meio da tomada de decisão coletiva na implementação desses instrumentos e na aplicação dos recursos da cobrança na própria bacia de origem. Também criou instâncias colegiadas  com poder  deliberativo nos níveis federal, o Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), estadual, o  Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CERHI), e por bacia hidrográfica, os Comitês de Bacia Hidrográfica (CBHs).

Vale destacar que o Estado do Rio de Janeiro teve o instrumento da cobrança pelo uso da água bruta  aprovada em 2003 e a totalidade de seu território já conta com seus comitês de bacia instalados, são nove. E podemos dizer ainda que com suas delegatárias de funções de agência de água funcionando a pleno vapor… ou melhor dizendo, quase a pleno vapor! Pois é, aí recordamos a máxima “ser ou não ser“, essa dualidade permanente e paralisante do processo decisório participativo que acontece atualmente no Rio de Janeiro. Ora, vejam, se temos a cobrança pelo uso da água efetivamente implementada desde 2003 e logo os recursos  repassados para as subcontas do Fundo Estadual de Recursos Hídricos (FUNDRHI), de acordo com sua região hidrográfica de origem e aplicados de acordo com deliberação dos comitês de bacia, conforme preconizado na lei, o que acontece hoje que não nos permite “ser gestão descentralizada” na completude da lei?

Vejamos o princípio das coisas: originalmente tanto a lei federal quanto a estadual de recursos hídricos citam, em seus artigos, a criação das agências de água, cujo papel principal é ser o braço executivo dos comitês de bacia, um corpo técnico e administrativo, que faria a gestão financeira das ações e atividades aprovadas pelo comitê de bacia. Os comitês são compostos por usuários da água bruta, poder público e sociedade civil organizada, eles deliberam coletivamente, e a agência de água deve propor e executar as ações e programas em sintonia com os instrumentos preconizados na lei estabelecendo parcerias diversas com universidades, administração pública, usuários de água, comunidades locais e por meio de contratos licitados.

Um desenho inovador de fazer gestão e com efetiva participação.

Então, para refletir sobre “o como fazer” esse novo modelo de gestão funcionar, e com um olhar um pouco mais aprofundado, deve se observar o que está posto no artigo n° 43, inciso II (Lei Federal 9.433):

  • “a criação da agência está condicionada a viabilidade financeira assegurada pela cobrança pelo uso da água”

e no seu artigo n° 44, inciso III:

  • “efetuar, mediante delegação do outorgante, a cobrança pelo uso de recursos hídricos”.

Entendemos que a criação das entidades delegatárias de funções de agência de água teve sua origem no fato de que, no Brasil nenhuma entidade, que não seja pública, poderia emitir o boleto de cobrança diretamente para o usuário ou seja, cobrar tarifa pública, se pudesse evitaria que o recurso tramitasse pelo caixa único do estado. No entanto, no caso da cobrança em rios de domínio da União, os recursos  vão para uma conta específica (por bacia) e não podem ser contingenciados, devendo voltar integralmente através de investimentos na recuperação ambiental na bacia de origem, e na forma dos contratos de gestão e outros mecanismos.

A iniciativa de criação das delegatárias, nos moldes da União, no estado do Rio de Janeiro pareceu ser uma boa solução em 2010, através de contratos (questionáveis) de gestão entre delegatárias e órgão gestor de meio ambiente, que foram firmados, apesar de notadamente frágeis. A gestão participativa das águas fluminenses seguiu em frente como modelo para o resto do país. Porém, nos últimos anos, paralisaram-se os repasses financeiros quase na sua totalidade e por questões adversas aos comitês. Sem dúvida, com a justificativa na crise econômico-financeira em que se encontra o Estado do Rio de Janeiro. Em meio a tais questões, sem negociação formal qualquer e sem a transparência devida, um processo junto ao Ministério Público Estadual foi aberto contra o Estado em busca de respostas, soluções e, mais importante, no sentido de preservar a política das águas e a autonomia dos comitês, conforme preconiza a lei. Assim, sem receber a totalidade dos recursos, as delegatárias apenas se mantêm com o mínimo para funcionar como secretaria executiva dos comitês, mas de mãos atadas para prosseguir nas contratações das ações de recuperação ambiental e de gestão hídrica aprovadas por estes.

Hoje se sabe que os recursos que haviam se transferido para o caixa único finalmente foram repassados pela Secretaria Estadual de Fazenda ao órgão gestor ambiental do Estado, mas, ali se encontra estacionado e um TAC (Termo de Ajuste de Conduta) está sendo proposto para devolver os recursos contingenciados anteriormente aos comitês – claro que em muitas parcelas. Arrisca-se pensar que só a pressão dos processos no MP estadual poderá liberar os recursos financeiros aos comitês de bacia, seus gestores legítimos e legais. Sem desconsiderar a importância de se ter um órgão estadual gestor de águas funcionando adequadamente, talvez até com apoio dos recursos da cobrança, a pergunta que fica é:

Por que não foi negociado com os comitês o uso destes recursos antecipadamente ao arresto pelo Estado? E quem garante o repasse das parcelas caso, um acordo nesse sentido venha a ser pactuado?

Não seria a criação da figura administrativa da entidade delegatária de algumas funções de agência de água, incompleta nas suas atribuições legais, uma das responsáveis por essa dubiedade do “ser ou não ser” da gestão de recursos hídricos? Essa é uma reflexão sobre incompletudes que coloca o “ser” gestão descentralizada e participativa das águas em risco de colapso.

É importante enfatizar, agora e sempre, o espírito fundamental da lei das águas, a gestão descentralizada e participativa, que busca a gestão parceira com governos eleitos, mas deve funcionar de forma independente. A ideia original era evitar a descontinuidade de programas e ações relevantes de recuperação ambiental das nossas bacias hidrográficas, devido a trocas no comando dos governos a cada quatro ou oito anos, ou mesmo as visões partidárias que as paralisem. Caminhar ao largo mas, em parceria, é fundamental e necessário para efetivamente recuperar ambientalmente as bacias hidrográficas do estado, sem cortes e arrestos.

No espírito da lei, a criação das agências de água é um passo necessário e urgente para a completude do “ser gestão” descentralizada e participativa, feita por todos e para todos.

Faço votos de que sejamos capazes de vencer mais este desafio em prol da plena gestão participativa das águas. Esse bem precioso e público. A água de todos nós.

Fátima Casarin, Rio, 30 de maio de 2017

Agradeço imensamente à Fátima Casarin por compartilhar conosco sua larga experiência com a gestão dos recursos hídricos, adquirida ao longo de sua trajetória profissional e militante em defesa da proteção desse bem maior, que é a água.

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